O encontro de Iberê Camargo (1914-1994) com Miguel Rio Branco nesta exposição justifica a escolha do título Huis Clos para a mostra, alusão a um mundo opressivo, sem saída de emergência. Em ambos os casos, trata-se de realizadores com rara consciência do trágico. Não o drama, mas a tragédia. Iberê Camargo amargou uma experiência existencial que o levou, no derradeiro período de sua vida, a pintar uma série como As Idiotas, débeis figuras violentamente banidas do convívio social. Miguel Rio Branco fixou em imagens o peso dessa decrepitude, voltando seu olhar para proscritos e deserdados sociais.
Contudo, a reunião de Iberê e Miguel Rio Branco não se dá apenas pela convergência de conteúdo temático. Embora seja um nome internacionalmente consagrado por seu trabalho fotográfico, Miguel começou sua carreira como pintor. E segue pintando até hoje, como é possível atestar em Huis Clos. A exposição tem desde raras telas dos anos 1960 até aquarelas e pinturas recentes, além de obras inéditas próximas do universo de Iberê Camargo. Dois trágicos nos trópicos.
Como contrapeso que equilibra a carga trágica da obra de ambos, a exposição reúne móveis desenhados por Jorge Zalszupin. Muitos foram originalmente criados para esta casa, sua residência.
O espírito lúdico que animou Zalszupin a desenhar peças leves como a poltrona Dinamarquesa, o banco Vintage ou a mesa lateral Capri, brincando com a criação de figuras geométricas no espaço vazio, surpreende. Zalszupin foi um exemplo de superação da tragédia, um refugiado polonês, perseguido pelo nazismo, que encontrou no Brasil seu lugar no mundo.
É preciso dizer que até mesmo Iberê começou lúdico. Um dos seus temas recorrentes é o dos “carretéis”, brinquedos da infância do pintor que o conduziram da figuração à abstração. Há pelo menos um exemplo histórico dessa passagem na mostra, a tela “Fiada de Carretéis” (1961), mesmo ano em que Iberê ganhou o prêmio de melhor pintor nacional na 6ª. Bienal de São Paulo.
Dos anos 1960 em diante, a pintura de Iberê passou por um adensamento matérico. E, a despeito do uso de tons menos crepusculares nos anos 1970, ele ainda recorreu à espátula e a uma paleta escura nessa década.
Há, na exposição, vários óleos dos anos subsequentes assinados por Iberê Camargo. Em termos comparativos, as primeiras telas de Miguel Rio Branco, pintadas nos anos 1960, em Nova York, fazem uso de uma paleta igualmente escura para mostrar um lado menos glamourizado da metrópole americana, o dos bairros com prédios marcados pela erosão urbana.
Já nessas primeiras pinturas, Miguel Rio Branco anuncia o que viria a explorar em fotografias ancoradas na montagem cinematográfica. Há uma ligação estreita entre as imagens desses prédios nova-iorquinos e os cortiços que seriam retratados cinco anos depois pelo cineasta independente Hal Ashby em seu filme de estreia, The Landlord (Amor sem Barreiras, 1970), fotografado pelo também estreante Gordon Willis (de O Poderoso Chefão e Manhattan).
Essa antecipação só acentua o dom visionário de Miguel, que também trabalhou com cinema, fazendo uso da sintaxe da edição tanto em suas pinturas como em suas instalações fotográficas (uma prova incontestável do domínio dessa linguagem é a histórica obra Entre os Olhos, o Deserto, que incorpora desde ferro enferrujado até paredes descascadas). Obra de 1997, ela pode ser vista no pavilhão permanente do artista em Inhotim.
Nesta exposição, Miguel faz citações diretas a artistas de sua predileção em obras como as fotografias Azul (homenagem a Yves Klein) e Morandi Perverso. Nos dois casos, cria-se um vínculo com a realidade por meio de signos pictóricos, o azul criado e patenteado em 1962 pelo francês Yves Klein, e a garrafa das naturezas-mortas de Morandi, ícone da sua obra.
Outros artistas referenciais para Iberê e Miguel poderiam ser mencionados, bastando, no entanto, citar Goeldi como uma figura paradigmática no imaginário pictórico dos dois. É a decomposição goeldiana do mundo que interessa à dupla, um mundo muito parecido com a obra em seda Hell’s diptych, de Rio Branco, representação metafórica do “huis clos” da peça homônima de Sartre e, por que não, de sua mais conhecida fala: “O inferno são os outros”.