Intimidade das formas: Yudi Rafael

Em sua autobiografia, Jorge Zalszupin contque após concluída a construção dcasa, em 1962, a tarefa de decorá-la foi assumida por sua esposa AnnetteNaquele ano, a família adquiriu uma pintura abstrata de Manabu Mabe, trocada por um sofá, que passou a ocupar uma posição central na sala de estar da residência até o final da década de 2010, período final da vida do designerVerônica Zalszupinsua filha mais velha, ainda hoje se lembra de caminhar descalça entre as obras de Mabe quando visitou o ateliê do artista na companhia de seu pai. 

Esse exercício quase arqueológico da memória constitui um ponto de partida para Intimidade das formas, exposição que dá continuidade à programação da Casa Zalszupin. A mostra propõe uma expansão do escopo de suas incursões nos modernismos brasileiros e em constelações transculturais que se deslocam do eixo europeu, retomando, assim, as investigações sobre a dimensão íntima revelada nos projetos residenciais organicistas do arquiteto. A memória da inscrição da obra de Mabe no interior desse espaço da vida cotidiana, torna-se, assim, interface histórica para um emaranhado de relações que se abrem na exposição.  

Em diálogo com as formas sinuosas e casulares que caracterizam as construções orgânicas de Zalszupin, a exposição reúne desenhos, pinturas, esculturas e mobiliários que remetem aos espaços e memórias afetivas da casa. Por um lado, a escultura botânica de Kimi Nii e os desenhos da flora japonesa de Massao Okinaka enfatizam a porosidade, no piso térreo, entre as salas e os jardins. Por outro, as pinturas de Tikashi Fukushima e Tomie Ohtake reverberam a presença-ausente da pintura de Mabe e da modernidade artística nipo-diaspórica do pós-guerra, trazendo o gesto e o lirismo de Fukushima, em um conjunto de pinturas incandescentes, e a geometria imprecisa de Ohtake, acompanhada do informalismo de suas “pinturas cegas”. 

Essas aproximações se desdobram com o mobiliário e os utilitários da designer Claudia Moreira Salles, em parte desenhados para a mostra, e as pinturas de Mika Takahashi, que trabalhou com a ETEL na criação de um biombo de madeira que tematiza as quatro estações do ano, em uma conversa artística intergeracional com a obra de Fukushima. Enquanto as bases de Salles, cujos materiais refletem as superfícies da casa, acolhem uma cerâmica em floração de Kimi Nii; as naturezas mortas de Takahashi inscrevem no espaço pictórico objetos do convívio cotidiano da artista, que incluem fragmentos do butsudan de sua família – altar para os ancestrais – e uma peça cerâmica da centenária Shoko Suzuki de sua coleção. 

Por meio da noção de intimidade, a exposição acena para o trabalho da memória levado a cabo pela casa-museu e enfatiza a dimensão do convívio, próprio ao seu ambiente doméstico, que se abre para distintas relações entre artistas, objetos e formas orgânicasSua lente nos permite revisitar, em companhia das obras aqui reunidas, um momento cultural prolífico, em que as trajetórias paralelas de imigrantes de continentes distintos se tocam, contra o pano de fundo da efervescência artística, arquitetônica e do design na São Paulo dos anos da construção da casa.

 

Yudi Rafael

curador

 

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